A ruptura do cristal: sobre “Bigger Than Life”, de Nicholas Ray
Em um melodrama familiar que mescla gêneros, Nicholas Ray realiza uma crítica feroz à masculinidade patriarcal. Texto com spoilers.
achamo-nos familiarizados com a noção de que a patologia, na medida em que aumenta e torna mais grosseiro, pode chamar a atenção para condições normais que de outra maneira não perceberíamos. Ali onde ela nos mostra uma ruptura ou uma fenda pode haver normalmente uma articulação. Se lançamos um cristal ao chão, ele se quebra, mas não arbitrariamente; ele se parte conforme suas linhas de separação, em fragmentos cuja delimitação, embora invisível, é predeterminada pela estrutura do cristal. (Sigmund Freud — A dissecção da personalidade psíquica)
Em “Ájax ou El Cid?”, crítica dedicada ao filme Juventude Transviada (“Rebel Without a Cause”, 1955), Éric Rohmer conferiu a Nicholas Ray o epíteto de “poeta da violência”. O cineasta estadunidense afirmava que a violência era o denominador comum de suas obras, povoadas de personagens não-conformistas que deixam pulsar para fora de si a violência que existe em potencial no interior de todo processo de aculturação.
Décadas antes do surrealismo de David Lynch misturar o melodrama e o film noir para revelar, com toda a agressividade formal, que por detrás da superfície bela do sonho americano — o subúrbio pacato povoado de rosas vermelhas e cercas brancas em Veludo Azul (“Blue Velvet”, 1986) — há sempre a profundidade aterrorizante da violência capitalista e patriarcal — orelhas decepadas, mulheres abusadas, homens agressivos implorando pela mãe no ato sexual -, Nicholas Ray se utilizava de um método semelhante, igualmente violento, porém mais sutil, que não apenas cabia dentro das possibilidades de expressão do sistema naturalista da Hollywood clássica como também as expandia, tirando sua força patética da narratividade clássica.
É o que notamos em seus films noir — como No Silêncio da Noite (“In a Lonely Place”, 1951) e Cinzas que Queimam (“On Dangerous Ground” 1952) — que, ao se revelarem melodramas masculinos deixavam transparecer, sob a pele da trama criminal, a tragédia existencial de homens cruéis, incapazes de se libertar da sua própria violência, e por isso condenados à eterna solidão. É a violência “perigosa, condenável, porém arrebatadora e bela” que, segundo Rohmer, torna Jim Stark um “herói trágico” à medida que Juventude Transviada realiza suas modulações genéricas entre o melodrama familiar, o filme de ação e o thriller.
Mas é em Delírio da Loucura (“Bigger than Life”, 1956) que a violência masculina parece mais pulsante. Mesclando gêneros, o filme se inicia como um melodrama masculino que se torna, ao longo de sua duração, um filme de horror expressionista, lidando com o dilaceramento subjetivo de Ed Avery, um professor de meia-idade que se vê incapaz de apresentar as condições materiais necessárias para comprovar sua virilidade e sua posição patriarcal no meio social em que se insere.
Acompanhamos no decorrer da obra seu processo de degradação física e mental, que estilhaça todas as seguranças — financeiras, psicológicas, corporais — de seu ambiente doméstico porque, invertendo o procedimento dos films noir de Ray, o drama familiar do protagonista esconde em si um desejo intenso de violência, a vontade de cumprir o papel paterno de forma impositiva, agressiva. Não é à toa que o filme constantemente recorre à iluminação chiaroscuro, gerando em suas sombras a indeterminação e os prenúncios da tragédia comuns ao noir.
Quando conhecemos o protagonista ele parece desprovido de símbolos de poder: é um professor de ensino fundamental endividado, envergonhado de sua dificuldade de prover para a família — a esposa, Lou, e o filho, Richie — com aquilo que considera sua “profissão nobre”, Avery trabalha escondido como despachante de táxi em uma sala apertada, na qual é o único homem entre uma multidão de mulheres.
Para além disso — ou, talvez, devido a isso — ele é constantemente acometido de crises intensas de dor em diferentes partes de seu corpo, que se revelam eventualmente sintomas de uma doença degenerativa que pode matá-lo em cerca de um ano. A única possibilidade para evitar sua morte é um tratamento experimental com cortisona, uma droga cujo uso prolongado pode lhe causar psicose.
Como na quebra de um cristal, o colapso de Ed Avery segue a estrutura da lapidação de sua subjetividade. A sua patologia não é alheia à estrutura patriarcal-capitalista na qual ele se insere, ela é seu produto, ela revela o que há de doentio nesse sistema. A dor do protagonista é menos o efeito fisiológico de uma doença que cabe dentro da racionalidade médica — racionalidade essa que o filme parodia como uma tagarelice incessante de termos latínicos sem sentido — do que o sintoma de um dilaceramento subjetivo diante da impossibilidade de prover financeiramente para sua família e ocupar, assim, a posição ideal da figura paterna.
A cortisona então age como um fármaco — simultaneamente, remédio e veneno — que busca prolongar sua vida apaziguando esse dilaceramento: a dor diminui e Ed, ignorando as enormes dívidas deixadas pela sua internação no hospital, passa a gastar todo dinheiro possível para demonstrar que está no controle de sua posição paterna. Mas, no limite, o fármaco é também aquilo que intensifica o dilaceramento: a retomada do ideal de virilidade do protagonista, permitida pelo uso do esteróide, o faz apenas desejar mais virilidade.
Em um de seus poucos momentos de insubmissão no filme, Lou se revolta contra a posição de servidão na qual o marido a coloca, quebrando o espelho onde, segundos antes, ele encenava a com garbo afetado as poses do retrato de um patriarca. Esse gesto de questionamento por parte de Lou, que fere o ideal de masculinidade recém-reconstituído de Ed, o levará primeiramente, à depressão e, em seguida, ao uso abusivo do remédio, como se ele lhe restituísse a “honra ferida” — num processo que culminará no delírio de uma masculinidade de tal forma inflada que se acredita superior até à figura paterna por excelência: “Deus estava errado!”.
À medida que o filme realiza suas modulações entre melodrama familiar dos primeiros atos e o filme de terror expressionista do ato final, revela-se que a essência desse horror sempre esteve presente naquela realidade: na raiva diante da monotonia doméstica (“Convenhamos — nós somos tediosos”), nas tentativas de recuperar a masculinidade pela emulação do juventude gloriosa como atleta (substituto, como descobriremos depois), na idealização de uma tradição da educação pela dor como método mais seguro de assegurar a moral, no conservadorismo cristão que se afirma como moral irredutível, culminando no delírio de Ed como o super-Homem mais correto que o próprio Deus.
Em dezembro de 1956, cerca de quatro meses após o lançamento de Delírio de Loucura, Douglas Sirk estrearia uma de suas críticas mais mordazes às pressões capitalistas-patriarcais: Palavras ao Vento (“Written on the Wind”). Neste brilhante woman’s film, as mulheres colocam em cheque a geometria das forças masculinas: Lucy, esposa do herdeiro de petróleo Kyle Hadley, é o objeto no qual esse alcóolatra impotente sublima a sua crise de masculinidade, em eterna comparação com aquela encarnada por Mitch Wayne, seu amigo de infância — trabalhador, inteligente, “másculo”. Este mesmo amigo será o objeto de desejo da irmã do Kyle, Marylee, uma figura que perturba toda a ordem patriarcal com a expressão desinibida de seus desejos — como ilustrado na cena em que a dança da filha pródiga leva o pai à morte em montagem paralela.
Se Palavras ao Vento questiona a masculinidade através da construção de figuras femininas que agem constantemente como elemento de perturbação da ordem estabelecida, Delírio de Loucura dirige um olhar ambivalente a Lou, esposa de Ed, ao mesmo tempo uma vítima da violência patriarcal e uma mulher que, por não conhecer uma realidade fora dessa ordem, se resigna a perpetuá-la aceitando calada a crueldade do marido como se fosse apenas uma forma mais dura de paternidade. Quando percebe a incontrolabilidade do delírio de seu marido, a impossibilidade de apaziguar sua violência, já é tarde demais — o lar literalmente está caindo aos pedaços.
Por este motivo, há uma grande ironia inscrita no discurso de Lou momentos finais do filme, quando responde à necessidade de continuar o tratamento com o fármaco para impedir que o marido morra: “Eu tenho fé em meu marido, em meu filho, na família que podemos ser juntos”. Sua fala soa menos como o triunfo de sua resiliência do que como o fracasso de sua libertação, um aviso de que o horror terá continuidade.
É o que a cena final demonstra, com requintes de crueldade: a família se reúne quando o pai reconhece seu erro, se abraçam e se reconciliam, mas o último plano os mostra enclausurados pelas bordas do quadro contra a parede cinzenta do hospital, mãe e filho são absorvidos pelo corpo de Ed, puxados do mesmo modo como ele fizera anteriormente em seus momentos autoritários, comprimidos numa massa disforme que tem, em seu centro, um rosto vermelho de olhar maníaco, que parece prenunciar a repetição da tragédia apesar da família ter aceitado, junto à trilha sonora, a obrigatoriedade do final feliz. Onde a narratividade clássica diz que deve prevalecer a moral, Nicholas Ray inocula sarcasmo.
Algumas leituras que inspiraram esse texto
DIDI-HUBERMAN, Georges. A invenção da histeria: Charcot e a iconografia fotográfica da Salpêtière. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930–1936). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Obras completas, vol. 18)
JACOBOWITZ, Florence. “The man’s melodrama: The Woman in the Window e Scarlet Street”. In: CAMERON, Ian (org.). The movie book of film noir. Londres: Studio Vista, 1992.
MERCER, John; SHINGLER, Martin. Melodrama: Genre, style, sensibility. Nova York: Wallflower, 2004.
OLIVEIRA JR., Luiz Carlos. Retratos em movimento. ARS (São Paulo), [S. l.], v. 15, n. 31, p. 183–208, 2017. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/ars/article/view/141282.
RAY, Nicholas et al. “American Cinema: Dossier — Nicholas Ray”. In: HILLIER, Jim (ed.). Cahiers du Cinéma — The 1950s: Neo-realism, Hollywood, New Wave. Londres: BFI Press, 1985.